Sobre a intervenção do Primeiro-Ministro na AR

Emprego científico ou emprego para cientistas? Porquê? Para quê? Que futuro?
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João Ferreira
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Registado: segunda abr 26, 2004 12:09 pm
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Sobre a intervenção do Primeiro-Ministro na AR

Mensagem por João Ferreira »

Olá a todos!

Deixo aqui alguns comentários apressados suscitados pela leitura atenta (que recomendo) da intervenção do primeiro-ministro na semana passada na Assembleia da República (já aqui colocada neste fórum):

Ao contrário do que pensei de início não se trata apenas de um mero anunciar de mais euros&empregos para a ciência - do género de outros que no passado foram feitos (recordo a este respeito o Conselho de Ministros especial que decorreu em Óbidos em Janeiro de 2004, onde se anunciou o "maior investimento de sempre na ciência"..) face ao qual a nossa reacção deveria ser algo do género "é bom, agora esperamos que se concretizem os anúncios"... ao mesmo tempo dando a entender que "gato escaldado...".

E digo "não se trata apenas", porque a verdade é que encontramos na intervenção - se vista com cuidado e na sua totalidade - sérios motivos de preocupação, e de crítica (que, creio, deverá ser incisiva).

O principal:

O governo propõe-se atribuir durante este ano e o próximo (suponho que na sequência da nova leva de projectos que aí vem) nada mais nada menos que 5000 bolsas, que não de formação (no sentido em que entendemos que se deve falar de formação, ou seja, para mestrados e doutoramentos). Ou seja, no total: 2450 bolsas para doutoramento e pos-doutoramento + 5000 das chamadas "bolsas de integração na investigação", leia-se (salvo esclarecimento mais preciso que não foi dado): para tudo e mais alguma coisa, como actualmente sucede. No total 7450 bolsas. Isto representa - segundo os nossos numeros - qualquer coisa como uma quase-duplicação do numero de bolseiros actualmente existente! E se o aumento das bolsas de doutoramento, do meu ponto de vista, se deve louvar, já a atribuição destas 5000 novas bolsas deve ser denunciado de forma veemente se, como tudo indica, corresponder ao que temos vindo a chamar de "falsas bolsas", ou seja bolsas para preencher necessidades permanentes do sistema, impedindo a contratação de mais técnicos e investigadores.

O governo fala em "novo tipo de bolsas" e chama-lhes "bolsas de integração na investigação", "destinadas a estudantes de licenciatura e mestrado que sejam integrados em centros de investigação". A pergunta é óbvia e impõe-se: Novo tipo? O que há de novo (para além do nome, que mesmo assim é parecido com as BICs que existem já desde a década de 90)? Estaremos a falar de 5000 novas BICs (recordo, do tipo de bolsas que mais temos criticado)? Assim parece... não se vislumbra nada de novo (repito, salvo melhor esclarecimento, que não foi dado).

Dizia que a atribuição de mais bolsas de doutoramento é de louvar - e creio que sim - mas se e só se a esse esforço (a montante) de formação de recursos, se associar um outro (a jusante) - de intensidade correspondente - de aproveitamento dos recursos formados, ou seja, de criação de emprego científico. E a esse respeito o que nos anuncia o primeiro-ministro?

Pois bem, diz-nos que irá "viabilizar a contratação pelas instituições científicas públicas de 500 novos investigadores doutorados até ao final de 2007”

A desproporção entre o número de empregos a criar e o número de bolsas a atribuir salta imediatamente à vista (a mim saltou-me) e será suficiente, no mínimo, para inquietar todos aqueles que apesar de tudo insistem em querer fazer destas coisas da ciência profissão e perspectiva de futuro.

Mas vejamos alguns números:

- De acordo com os dados mais recentes (Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional 2003, OCES), Portugal, tendo em conta a sua população activa, apresenta face à média da UE um défice de 10000 investigadores.
- Relativamente ao número de técnicos e outro pessoal afecto a actividades de investigação, este défice é ainda maior. Em Portugal existe um técnico por cada 3,8 investigadores. Na UE-25, o rácio baixa para um técnico por cada 1,3 investigadores (http://www.bolseiros.org/pdfs/Investiga ... ut2005.pdf).

São números que ilustram bem quanto estes 500 novos investigadores terão que ser considerados apenas e só um primeiro pequeno passo – positivo, é certo – na recuperação do nosso enorme atraso. Importa prosseguir e intensificar este esforço, não o restringindo ao aumento do número de investigadores mas considerando também o imprescindível aumento do número de técnicos.

O anúncio agora feito, fica muitíssimo aquém daquilo que seria necessário mas também muito aquém daquilo que seria já hoje possível assegurar.

Acresce a tudo isto a preocupação que nos deve suscitar o tipo de emprego de que falamos: tanto quanto foi dado a entender, tratam-se de contratos a termo.

É uma figura que se justifica em determinadas situações - muitos actuais bolseiros deveriam na verdade estar sob este enquadramento - mas que não esgota a necessidade de outras formas de enquadramento, com outras perspectivas de estabilidade e de desenvolvimento de carreira, que esta figura manifestamente não oferece.

E relativamente a isto, nem uma nota, por exemplo, sobre a renovação e rejuvenescimento dos quadros de pessoal dos Laboratórios do Estado.

A justificação poderá ser a de ainda estar a decorrer o processo de avaliação destas instituições... admitamos que sim. Mas até a este respeito, não faltam motivos de preocupção.

Está efectivamente a decorrer um processo de avaliação externa (comissão externa de avaliação dos Laboratórios do Estado). Não há - tanto quanto se saiba até ao momento - conclusões desse processo. Está a decorrer... Mas o primeiro-ministro sempre vai adiantando que "tiraremos todas as conclusões do processo de avaliação internacional das instituições científicas". Óptimo. Outra coisa não se esperaria, caso contrário ele não serviria para nada (como não serviu o de 97). Mas o que é de estranhar é que se adiantam conclusões de um processo que supostamente está a decorrer (e a ser conduzido por terceiros - a tal comissão externa) ao apontar-se para o combate "à proliferação excessiva de estruturas" e para a redução em 25% do numero de centros. Entao, esperamos pelas conclusões da comissão ou não esperamos? (recordo só que quando se iniciou este processo de avaliação se admitiam todos os cenários, desde a extinção à criação de novas instituições; agora só se fala em redução... terá o primeiro-ministro um sentido premonitório face às conclusões do trabalho da comissão? ou está simplesmente a querer dizer que diga ela o que disser, o governo já sabe o que vai fazer?).

Bom, por aqui me fico. Só uma nota final para dizer que a situação actual aumenta e muito as exigências e responsabilidades que se nos colocam - a nós, bolseiros de investigação, a nós, trabalhadores científicos - de defesa (efectiva! que vá para além dos discursos e dos anúncios sob os holofotes da comunicação social...) da ciência e do seu papel no nosso desenvolvimento.


Abraço,
João Ferreira

Susana Relvas
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Mensagem por Susana Relvas »

Estive a ler os teus comentários que não me pareceram nada apressados... :)

Agora passando às coisas sérias: em minha opinião a questão é que se quer forçar a aumentar os números que têm visibilidade. O problema é que em Portugal a ciência não tem uma estrutura de apoio como deve ser:

1 - Os bolseiros fazem N acções fora do âmbito do seu trabalho (e isto desde as BICs, existentes mesmo no seio da FCT, até aos pós-docs);

2 - A integração num sistema mais estável e com condições de vida de todos esses bolseiros não está a ser discutida nem alterada;

3 - A ciência não é praticamente recebida como uma mais valia por ninguém fora do âmbito académico, isto é, ao nível empresarial;

4 - Além de bolseiros, há imensos docentes que têm de fazer trabalho de secretariado para promoverem a sua actividade, quando tenho conhecimento por exemplo de pessoas orientadas para o marketing de ciência que só vendem ciência no Imperial College em Londres;

5 - A comunicação de competências e áreas de trabalho é muito fraca: vejam por exemplo o meu caso: o meu doutoramento é, basicamente, o desenvolvimento de uma ferramenta de apoio à decisão. É claro que para vir a ser utilizada por uma empresa é preciso ter uma parte gráfica e de fácil manuseamento para que o meu trabalho de programação matemática seja de fácil acesso aos utilizadores... Quem é que faz a parte gráfica? Eu, que sou engª química? Vou "perder" meses do meu tempo de tese a aprender linguagens de programação? Isto prolifera-se por vários doutorandos nesta área e vemos aqui obviamente lugar para ou estágios ou mesmo empregos... Agora digam-me onde há lugar e dinheiro para esta estrutura de apoio à ciência. Todas estas ferramentas de apoio à decisão, bem estruturadas, são patentes, são conhecimento nacional, feito em Portugal. Mas quem é que nos dá ouvidos? Quem é quer apostar de facto no que vale a pena?

Isto é que tem de se estruturar, senão a ciência não dá frutos nenhuns. Não são mais bolsas que estão em causa, quando há precaridade em dar uma vida em ciência a quem gosta dela e a quem já tem uma bolsa de doutoramento.

A preocupação já vimos que existe, resta é canalizar esforços e dinheiro em fazer ver isto a quem tem o poder de decisão.

Susana
Assistant Professor - DEG/IST/UTL
Sócia da ABIC

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